Hoje faz um mês que minha cachorra, a Mel, partiu. E não, não estou ‘lidando bem’.
Uma parte minha queria muito sentar e escrever, desde poucos dias depois da morte dela, mas eu não tinha/tenho o espírito para falar sobre isso sem chorar. Talvez eu chore agora também, mas eu queria marcar esse momento.
Eu queria poder dizer para vocês, leitores, e para qualquer pessoa que falasse comigo, sobre o quanto ela foi importante na minha vida. Mas eu sinto que todas as palavras juntas não conseguem traduzir essa dimensão, que ninguém jamais entenderia, mesmo eu me esforçando. Ainda assim, tento.
Ela era tudo.
Desde a partida dela, ando encontrando partes de mim que há muito eu não acessava. Tenho revisto feridas antigas, primordiais. Tenho me deparado com as manifestações de luto que eu tanto encontro nos pacientes na clínica e que há muito não sentia. Tenho ficado irritada, birrenta, sem ‘carisma’, tenho pouca energia, faço o mínimo. E não tenho pressa em melhorar.
Eu tinha 20 anos quando, numa madrugada de carnaval, em 2009, voltando a pé pra casa, passou por nós um homem de bicicleta, claramente embriagado, carregando um filhote na mão. Eu gritei, ao ela respondeu imediatamente me olhando, erguendo as orelhas e sorrindo. Coisa que ela faria pelos demais 16 anos da vida dela.
Eu a troquei por uma galinha caipira, que na época custava cerca de 20 reais. Sempre conto essa história com orgulho das risadas que ela provoca.
Aos 20 anos, eu era perdida. Muito, muito mais do que sou hoje. Eu havia recém saído da casa da minha mãe, com o salário de um estágio, que não pagava sequer um aluguel. Eu não tinha saúde mental para sequer cuidar de mim, mas a ela, eu fiz uma promessa naquele dia: “vou cuidar de você enquanto você respirar”. E assim, um mês atrás, eu estava com os olhos em seus olhos e a mão em seu coração enquanto a via se despedir da vida.
Ela me salvou mais vezes que eu me permitira contar publicamente. De matar aranhas a espantar um homem que entrou em minha casa para assaltar enquanto eu dormia. Mas não foram atos heroicos que fazem com que eu diga sobre minha vida ser salva: foram os mundanos.
Foram todas as vezes nos últimos 16 anos em que ela me recebeu em casa com alegria.
Todos os passeios que demos juntas e que, mesmo que tantas vezes seguiam o mesmo roteiro, mas que ela tratava com a empolgação de um novo presente.
Foi o jeito dela estar junto sem dizer uma única palavra e ainda assim dizer tudo: “estou aqui, estou presente, eu te amo, você é meu mundo.”
Eu acho que nunca fui o mundo de alguém. Mas eu fui o dela.
Até ela surgir na minha vida, eu achava que amor era algo que exigia merecimento. E foi preciso viver um monte de experiência ruim pra perceber que o que ela me dava não era algo único de uma relação entre cachorro e humano, mas, se eu consegui perceber isso em outras relações, foi porque primeiro eu vivi com ela.
5 anos atrás eu precisei sair da minha cidade porque estava morrendo. Na pandemia, vivendo uma mudança total e absoluta de vida, só uma coisa me era clara: ela viria junto. Isso nunca foi uma questão. Primeiro, eu tinha prometido. E conforme os anos passavam eu percebia que a única constância na mudança da vida, era ela. Ela sempre esteve ao meu lado e sempre estaria.
Só que agora ela não está mais. É incrível como, por estudar sobre morte e luto, e por atender pessoas enlutadas, eu sempre soube que ela um dia partiria, e de fato isso foi uma grande questão para mim. Mas algo em mim já estava tão habituado com a presença incondicional dela que achava que, quando uma morresse, a outra morreria junto. E agora ela morreu e eu não caminho mais pela vida com ela ao meu lado. E meu coração está partido, pesado e inconsolável desde então, com a triste percepção de que nunca mais viverei outra experiência de vida na qual ela faça parte.
Boa parte de mim sente-se convencida de que por muito tempo, eu não vivia, e só tentava sobreviver ao mundo, às pessoas e a mim mesma. Mas sempre que eu ia longe demais, ela me trazia de volta. Ser responsável pela água, pela comida, pelo cuidado e pela felicidade dela foi, por muitos anos, por mais anos do que eu gostaria de admitir, a única coisa que me manteve em pé e respirando. Mas entre o lodo e o céu limpo, entre o ferro e a prata, ela sempre esteve lá. Eu me esforcei muito para fazer a vida dela feliz. Hoje eu felizmente consegui me acolher e aos poucos encontrar sentidos, ir me curando, mas por muito tempo ela era o fio que me ligava à vida e à alegria.
Joan Didion escreveu um livro após a morte do marido, chamado “O ano do pensamento mágico”. Ela descreve esse primeiro ano com a sensação constante de que ele iria voltar dos mortos. Às vezes me pego, plenamente consciente que estou tendo um pensamento mágico, chamando seu nome. Escrever sobre isso hoje talvez seja eu tendo outro pensamento mágico; talvez seja eu tentando dizer para ela: “eu lembro de você o tempo todo, eu vou fazer todo mundo saber o quanto você era importante, e assim manter você viva”. A teórica em mim felizmente me acolhe, me deixa em paz, e me permite fazer o que for necessário para vivenciar essa dor e essa saudade da forma mais saudável possível. Agradeço a ela.
Ao longo da vida eu perdi muitas pessoas importantes para a morte. E isso me deixa às vezes com um enorme medo de amar e de perder de novo. Mas ter vivido ao lado dela, e estar tão grandemente desnorteada por essa falta, me mostra que o preço do amor é muito alto, mas que eu viveria tudo isso de novo.
Para muitas pessoas, um cachorro é só um cachorro. Para mim, a Mel foi - e seguirá sendo - a relação mais transformadora que eu vivi. Eu tive a sorte de viver tantos anos ao lado dela, afinal ela viveu muito (e ‘morreu de vida’, como disse um gentil amigo). Mas se eu pudesse, eu viveria mil outras vidas ao lado dela. E a ateia em mim reza baixinho pedindo pra que um dia a gente volte a se encontrar.
🖤
Um abraço apertado, Ana. Que todos os gestos dela que um dia te confortaram sejam lembrados e iluminem seu coração também neste momento.